quarta-feira, 10 de junho de 2009

Emergências Psiquiátricas pelo Uso da Cocaína

Emergências Psiquiátricas pelo Uso da Cocaína
Ronaldo Laranjeira
Cláudia Maciel

1. Introdução
A cocaína é a substância psicoativa ilícita que traz maiores problemas à sociedade e ao usuário. É um alcalóide extraído das folhas da planta Erythroxylon coca, planta nativa da região andina e é o único anestésico de ocorrência natural e apresenta potente ação vasconstritora sendo atualmente utilizada em cirurgias oftalmológicas e otorrinolaringológicas devido a sua eficácia e eficiência.
Historicamente a cocaína tem sido usada com diversas finalidades. Os nativos da região andina usavam as folhas de cocaína para diminuir a exaustão e a fome possibilitando o trabalho nas regiões com baixas concentrações de oxigênio. Na Europa, após isolamento e purificação da cocaína no século XIX por Niemann isolou propiciou a utilização da cocaína em medicamentos para o tratamento de diversas patologias com eficácia questionada. Quando a cocaína passa a ser usada com propósitos recreacionais torna-se um problema importante para a sociedade e em 1914, nos EUA, o Harrison Act (lei americana que regulava e taxava a produção, importação, distribuição e uso dos opiáceos) passa a incluir a cocaína na lista dos opiáceos (erroneamente) e inclui passa a ser uma substância de utilização apenas restritas à prescrição médica (Musto, 1991).
Desde a sua proibição em 1914, a utilização da cocaína pela população geral declinou com o aumento crescente da prevalência de uso a partir dos anos 60. Nesta época, as pessoas que utilizavam cocaína eram pessoas com alto poder aquisitivo e a cocaína era considerada uma substância segura, apresentando baixo potencial de abuso e/ou dependência e baixo potencial de letalidade. Entretanto, esse baixo potencial de letalidade inicialmente postulado à cocaína tem relação com a forma comumente usada nas décadas de 60 e 70 (via intranasal). A via intranasal apresenta alteração na taxa de absorção de cocaína em decorrência dos efeitos vasoconstritores da cocaína e, com isso, uma menor absorção e uma menor chance de ocorrência de efeitos agudos adversos. Em um estudo realizado nos EUA, demonstrou-se que as vias de utilização mudaram desde o ressurgimento do uso de cocaína nos anos 60/70. Inicialmente o uso de cocaína era intranasal, sendo substituído pelo uso endovenoso (administrada juntamente ou não com heroína) nos anos 80 e pelo “crack” nos anos 90. Essa mudança no padrão de uso de cocaína pode ser explicada tanto pela questão financeira (o crack tem valor menor que a grama de cocaína em pó), quanto pela noção de “segurança da via utilizada” já que o uso de drogas endovenosas traz consigo uma chance de ocorrência de doenças infecto-contagiosas graves (dentre elas a síndrome de imunodeficiência adquirida – AIDS) e isso parece ter feito com que o uso de cocaína pela via endovenosa tenha sofrido uma redução na prevalência de utilização entre os usuários de cocaína (Pollack, 1991; Dunn, John & Laranjeira, Ronaldo R. 1999 ).
No Brasil, a cocaína é a sétima substância psicoativa mais utilizada na vida pela população brasileira acima de 12 anos, correspondendo a 2,3% da população brasileira. Um grande problema no controle do uso de cocaína/crack refere-se ao preço baixo destas substâncias e a facilidade de se encontrar essas substâncias para o consumo. Após um aumento significativo do consumo de cocaína entre os anos de 1987 – 1997, houve uma estabilização do consumo nos anos de 1997 a 2004 segundo levantamento nacional de consumo de substâncias psicoativas entre estudantes brasileiros (CEBRID, 2002;CEBRID, 2004; Laranjeira R, 1996).

2. Cocaína – aspectos físico químicos
A cocaína é uma substância que pode ser absorvida por qualquer mucosa, através dos pulmões ou injetada pela via endovenosa. A via inalatória é bastante comum, mas o uso do crack tem aumentado a prevalência do uso pela via pulmonar.
O hidrocloreto de cocaína é uma substância hidrofílica e é absorvida pela mucosa (nasal, oral, gengivas, vaginal, anal etc) ou injetada pela via endovenosa. Usualmente é misturado a vários adulterantes (e a presença dos adulterantes pode resultar em risco de morte entre os usuários). A cocaína sob a forma de “crack” é um alcalóide e pode ser consumido fumado isoladamente ou associado à maconha ou tabaco. Há uma certa dificuldade na diferenciação entre as formas “crack” e “freebase”. Ambas apresentam a mesma forma química da cocaína sendo feitas de técnicas diferentes. A forma “freebase” é feita dissolvendo o hidrocloreto de cocaína a água adicionando uma base (amônia, por exemplo) e depois um solvente (como éter) e, desta maneira vários adulterantes solúveis em água são removidos. Em decorrência da alta volatilidade do éter que pode permanecer após a extração do “freebase” há um risco de queimaduras graves. O uso de “freebase” tem diminuído a sua utilização nos EUA enquanto o uso de “crack” tem aumentado significativamente.
O “crack” é feito de um processo mais simples. O hidrocloreto de cocaína é dissolvido na água, misturado a bicarbonato e aquecido. O crack é vendido em pedras que são fumadas sem riscos de ocorrência de queimaduras graves como o “freebase”. O crack é capaz de alcançar a corrente sangüínea com a mesma velocidade que a via endovenosa e alcança a circulação cerebral rapidamente e, conseqüentemente, tem os efeitos subjetivos da cocaína mais rápidos quando comparados com outras vias de utilização.
A cocaína pela via inalatória produz um quadro de euforia de 3 a 5 minutos com pico entre 30 e 60 minutos. A quantidade de cocaína que é absorvida pela mucosa nasal é limitada em decorrência das propriedades vasoconstritivas da cocaína e estima-se que a biodisponibilidade da cocaína inalada está entre 20 e 60% da quantidade inalada.
A cocaína é metabolizada principalmente através da ação da butirilcolinesterase, antigamente conhecida como colinesterase plasmática ou pseudocolinesterase sendo a maior forma de detoxificação da cocaína no plasma. A via oxidativa também pode ocorrer na metabolização da cocaína, mas em pequenas concentrações. A cocaína pode estar presente na urina de adultos por 24 – 36 horas após uso dependendo da forma de utilização e da atividade enzimática. A butirilcolinesterase encontra-se com a atividade diminuída nas crianças, fetos, idosos, hepatopatias e grávidas. Os metabólitos inativos produzidos pela BChE são éster metil ecgnonina e ácido benzóico e são rapidamente excretados pelos rins. Estudos animais demonstram que a introdução de BChE em cobaias protegem os animais dos efeitos letais da cocaína incluindo a hipertensão arterial e arritmias (Gawin, 1988; Mattes et all 1997). A meia vida da cocaína no sangue é de aproximadamente 1 hora com menos de 5% da cocaína sendo eliminada sem mudanças na urina. A maior parte da excreção da cocaína e seus metabólitos ocorrem nas primeiras 24 horas após a administração, independente da via de administração. Os dois maiores metabólitos da cocaína são benzoilecgonina e éster metil – ecgonina.

3. Neurotransmissores associados ao uso de cocaína
A cocaína tem seus efeitos clínicos secundários às ações em neurotransmissores cerebrais, principalmente a dopamina, serotonina e noradrenalina. As catecolaminas (dopamina e noradrenalina) derivam da tirosina e a serotonina deriva do triptofano e são liberadas das vesículas de armazenamento através da despolarização ativando os receptores pré e pós sinápticos. Transportadores de membrana pré sinápticos para serotonina, noradrenalina e dopamina controlam as ações sinápticas das monoaminas pela retirada das catecolaminas da fenda sináptica. Drogas que modulam a atividade dos transportadores de monoaminas produzem efeitos comportamentais importantes.
A realização de um maior número de estudos neurobiológicos sobre a ação da cocaína no cérebro vai gerar um maior entendimento dos efeitos da cocaína no corpo humano bem como propiciar o desenvolvimento de medicamentos mais eficazes no tratamento dos usuários de cocaína.

Complicações Agudas Secundárias ao Uso de Cocaína
Os problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas vão muitos além dos efeitos sobre o individuo que consome a substância. Os efeitos podem ser sentidos em todos os segmentos da sociedade. Doenças físicas e/ou mentais incapacitantes, violência (assaltos, suicídio, homicídio, tráfico de drogas), mortes precoces são alguns dos efeitos na sociedade. Os problemas sociais advindos do uso de substâncias ilícitas é maior que os problemas sociais resultantes do uso de substâncias licitas (álcool, tabaco). Em primeiro lugar porque a produção ilegal, a distribuição e a posse de substâncias psicoativas ilícitas constitui crime. Depois porque o uso de drogas aumenta a criminalidade com aumento da violência social (tráfico, homicídio, suicídio, guerrilhas urbanas), posse ilegal de armas, corrupção de vários níveis e formas etc. Esses graves problemas resultam em custos financeiros e sociais para toda a sociedade com piora da qualidade de vida (M. Frischer, 1994).
A proporção de usuários de substâncias psicoativas ilícitas que terão sérios problemas de saúde e problemas sociais não é sabido. Entretanto, os problemas na esfera da saúde pública são bastante freqüentes entre os usuários de cocaína. As substâncias psicoativas mais freqüentemente associadas a mortes são: álcool, tabaco, cocaína, derivados anfetamínicos e opiáceos. O uso da cocaína está associado freqüentemente ao uso de outras substâncias psicoativas tais como álcool, benzodiazepínicos, anfetaminas, heroína, maconha e os efeitos desta associação podem ser graves e fatais. Os problemas clínicos decorrentes do uso de cocaína são variados e incluem desde casos de desnutrição, exaustão física, doenças cardiovasculares, doenças pulmonares e doenças do sistema nervoso central e o número de pacientes usuários de cocaína em serviços de urgência tem aumentado significativamente e as causas mais freqüentes incluem trauma (acidentes, homicídios, suicídio). Quadros de reações agudas adversas ao uso de cocaína são extremamente freqüentes e variadas. O termo “overdose” é assim definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS):
“O uso de qualquer substância ilícita, em qualquer quantidade que cause efeitos agudos físicos e/ou mentais adversos”. (World Health Organization, 1994)
O termo “overdose” popularmente está relacionado a mortes resultantes do uso de substâncias psicoativas. Assim, a OMS propõe que o termo “overdose” seja substituído pelos efeitos agudos adversos ao uso de substâncias psicoativas. As reações agudas ao uso da cocaína mais freqüentemente associadas ao sistema cardiovascular incluem hipertensão arterial sistêmica (HAS), infarto agudo do miocárdio (IAM), acidente vascular cerebral (AVC) dissecção de aorta, vasoespasmo e cardiomiopatia (Kloner RA, 1992; Lange RA, 2001) enquanto que no sistema nervoso central os principais efeitos agudos são: enfarte cerebral, convulsões, hemorragias cerebrais, enxaqueca, vasculites e casos transitórios em sua maioria, de cegueira aguda (Gay, 1982; CM Sauer 1991).
Vários efeitos agudos secundários ao uso de cocaína são graves e são responsáveis pela mortalidade excessiva secundária ao uso de cocaína bem como um aumento da procura de serviços de urgência em decorrência da gravidade dos quadros. Detalharemos a seguir os efeitos adversos mais comumente encontrados nos serviços psiquiátricos de emergência.

4. Intoxicação Aguda por Cocaína
O uso de cocaína pode gerar graves conseqüências mesmo em pessoas que só utilizaram a substância uma única vez e isso se deve às complicações secundárias aos efeitos diretos e indiretos da toxicidade da cocaína. Efeitos adversos graves secundários a utilização de cocaína como anestésico tópico são raros, embora em alguns casos, fatais. Muitos dos efeitos adversos secundários ao uso da cocaína são baseados em relato de casos e a freqüência destes acontecimentos é difícil de ser determinada, inclusive a relação de causa e efeito. A via de administração da cocaína afeta o tipo de complicações que vão se desenvolver e é importante salientar que as mudanças de via de utilização de cocaína nas últimas décadas também alteram a freqüência e o tipo de complicações esperadas pelo uso de cocaína (Rubin 1992; Derlet 1989; Gawin, 1988).
A grande parte dos pacientes que comparecem aos serviços de urgência apresenta sintomas psiquiátricos (tais como alteração na sensopercepção, alteração na atividade, risco de suicídio e agitação psicomotora grave, por exemplo), cardíacos (dor torácica, crises hipertensivas, palpitações ou sincope) ou neurológicos (convulsões). Entretanto, é difícil precisar o grau de toxicidade da cocaína uma vez que a pureza da droga não pode ser determinada adequadamente, nem a dose de cocaína utilizada bem como o uso de outras substâncias em concomitância com o uso da cocaína.

Efeitos psiquiátricos secundários ao uso da cocaína
Efeitos psiquiátricos secundários ao uso de cocaína são comuns e freqüentemente são causa de visitas a serviços de urgência e emergência em hospitais clínicos e/ou psiquiátricos. Os efeitos da cocaína podem ser primários (quadros de delirium, agitação psicomotora, agressividade) ou comórbidos (o uso da cocaína exacerba sintomas psiquiátricos já existentes, como no caso de sintomas psicóticos ou maníacos). Esse é um ponto crucial na avaliação do paciente em serviços de emergência uma vez que os sintomas apresentados (alucinações, delírios, taquilalia, agitação psicomotora) podem fazer parte do conjunto de sintomas de intoxicação por cocaína, mas também podem ser sintomas primários de quadros psicóticos e, em muitos casos, o não reconhecimento adequado da comorbidade gera uma piora da evolução dos transtornos mentais com piora da qualidade de vida do paciente e seus familiares, maior ônus com internações mais freqüentes e mais prolongadas e também maior índice de recaídas e sintomas de violência. O paciente com quadro de intoxicação por cocaína geralmente chega ao serviço de urgência/emergência apresentando-se com quadro de ansiedade, euforia, desorientação e em muitos casos, agitação psicomotora, violência e suicídio.
Quadros de agitação psicomotora podem ser descritos por uma constelação de comportamentos não relacionados que constituem um risco importante à segurança do próprio paciente e de terceiros bem como dificulta o processo de cuidados ao paciente. Representa um estado desorganizado, sem objetivos claros, de atividade psicomotora e pode ser resultante de várias situações clínicas como quadros de delirium, demência, intoxicação e/ou abstinência de substâncias psicoativas, esquizofrenia, quadros delirantes, transtorno bipolar, etc. Devido ao grande número de entidades clínicas que podem cursar com quadros de agitação psicomotora, é um dos sintomas mais freqüentes em serviços de urgência e/ou emergência (Lindenmayer, 2000). Estudos neurobiológicos evidenciaram que, em ratos em estados hiperdopaminérgicos, quadros de agitação psicomotora foram observados quando estes eram expostos a situações novas (Xiaoxi, 2001; Deborah, 2003). Entretanto, a serotonina também está envolvida no processo de agitação psicomotora sendo evidenciado através de ansiedade extrema e através do aumento da resposta adrenomedular aos efeitos externos (Tjurmina, 2002). Os pacientes intoxicados por cocaína apresentam-se inicialmente eufóricos e hiperalertas. O quadro pode evoluir para agitação psicomotora grave, quadros paranóicos, convulsões, quadros psicóticos, coma e esse quadro podem aumentar as chances de ocorrência de suicídio, agressividade e acidentes significativos (Gawin, 1988). Os pacientes apresentam-se incrivelmente fortes e com diminuição da sensibilidade aparente a dor e isso pode ser um fator de risco para acidentes com o próprio paciente, com acompanhantes e os profissionais de saúde (Joann, 1998).
A despeito da necessidade de um diagnóstico adequado das possíveis causas do quadro de agitação (uso de substâncias psicoativas, transtornos psiquiátricos primários ou ambas as causas), é sabido que, nos serviços de urgência, em muitos casos a escolha da medicação sedativa para o controle do quadro é feita baseada no padrão de segurança da medicação, bem como na eficácia e eficiência do controle dos quadros de agitação. Assim, nestes casos, o uso de benzodiazepínicos parece ser uma das medicações mais adequadas, uma vez que os riscos associados ao uso de neurolépticos em pacientes que fizeram uso de substâncias psicoativas, no caso a cocaína, poderia gerar quadros de síndrome serotoninérgica (no caso dos atípicos), alterações na despolarização cardíaca, impregnação neuroléptica importante, etc. (Whelan, 2004).
Quadros de delirium também podem ocorrer nos pacientes intoxicados por cocaína. A apresentação clínica em geral é de um paciente com quadro de agitação psicomotora, desorientação temporal e espacial e alteração no nível de consciência do paciente. Este quadro não parece estar relacionado com a dose de cocaína usada, o nível sanguineo de cocaína nem tampouco a via de utilização e a freqüência do uso. Se não tratado adequadamente, este quadro confusional pode ser manter por alguns dias e, em alguns casos, evoluir para óbito. Este quadro pode surgir em decorrência do uso de cocaína bem como na abstinência da mesma. O tratamento para este quadro deve ser instituído o mais brevemente possível e inclui cuidados com a ventilação pulmonar, checagem para possíveis traumas (que podem complicar o quadro clínico), avaliação de déficits neurológicos, dados vitais, reflexo pupilar. A medicação deve ser fornecida ao paciente com o objetivo de minimizar os efeitos deletérios da agitação psicomotora e, deve ser preferencialmente feita pela via parenteral e a medicação de escolha recai nos benzodiazepínicos uma vez que tem eficácia e eficiência no controle da agitação e apresenta diminuição da chance de ocorrência de convulsões. A avaliação bioquímica do paciente deve ser feita o mais brevemente possível (Wetli, 1985).
Sintomas psiquiátricos já existentes podem ser exacerbados entre pacientes intoxicados por cocaína. Quadros comórbidos têm sido descritos freqüentemente e o diagnóstico diferencial nem sempre é fácil de ser realizado. Além disso, a presença de comorbidade psiquiátrica em um paciente portador de transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas é o principal preditor de resultados no tratamento sendo que, quanto maior a incidência de sintomas psiquiátricos, pior os resultados do tratamento para transtornos relacionados ao uso de substâncias. O contrário também é valido, já que a presença de uso de substâncias psicoativas entre a população de pacientes psiquiátricos prediz uma piora na evolução do mesmo estando relacionado a um aumento do número de admissões psiquiátricas, violência, agressividade, suicídio e aumento no custo do tratamento(Pepper, 1984; Drake, 1998; Kessler, 1994).
O uso de cocaína isoladamente não é prática comum. O uso de outras substâncias psicoativas pode ser responsável pelo agravamento dos quadros vistos em serviços de urgência/emergência. A associação entre uso de álcool e cocaína é bastante comum e os efeitos bem estabelecidos com aumento dos níveis plasmáticos de cocaína e norcocaína, redução da concentração de benzoilecgonina e indução da síntese de cocaetileno. O cocaetileno é um metabólito ativo formado na presença do etanol (FARRÈ, 1993) e tem ações bem estabelecidas no sistema cardiovascular.
A associação entre anfetamina e cocaína exacerba os sintomas simpaticomiméticos uma vez que ambas as substâncias são estimulantes do sistema nervoso central e esta associação potencializa os riscos de convulsão com aumento significativo de mortes entre os usuários.
A cocaína e a nicotina são substâncias psicoativas bastante utilizadas e ambas são estimulantes do sistema nervoso central. Muitos usuários adicionam o crack ao cigarro de nicotina para a sua utilização. Semelhante à cocaína, a nicotina também aumenta a freqüência cardíaca, pressão arterial através da ação em dopamina bem como sensações subjetivas de bem estar, “alto” mas, ao contrário da cocaína, a nicotina tem uma relação de dose na sensação de sintomas desagradáveis (Hendrée, 1999).
O uso de benzodiazepínicos por usuários de cocaína pode ser tanto secundário a prescrição médica quanto abuso e dados sobre estes padrões de uso não são comuns. Essa medicação é bastante usada pelos profissionais de saúde no tratamento de portadores de sofrimento mental e usuários de substâncias psicoativas. Na população de portadores de sofrimento mental, o uso de benzodiazepínicos não constituiu quadros de abuso. Entretanto, na população de usuários de substâncias psicoativas, a prescrição de benzodiazepínico pode se constituir em quadros de abuso. Os efeitos desta associação não constituem problemas clínicos importantes, já que o uso clínico dessa associação existe para o tratamento de várias conseqüências do uso de cocaína (Brunette, 2003).
No Brasil o uso de heroína pode ser considerado exceção (Carlini 2001). Entretanto, na Europa e nos EUA constitui de um grave problema de saúde pública. Nestes países, é comum a associação de heroína e cocaína endovenosa (speedball) e o seu uso vem crescendo a cada ano. Observações clínicas têm demonstrado que o uso de speedball tem risco aumentado para ocorrência de infecção por HIV bem como uma maior incidência de sintomas psiquiátricos. Empiricamente, a associação destas substâncias parece estar ligada à ação nos recepotores mu (Battjes 1994; Ettenberg, 1982; Brooner, 1997).

5. Conclusão
Os efeitos psiquiátricos do uso de cocaína são variados e um número grande de pacientes são encaminhados aos serviços de urgência e/ou emergência em virtude do quadro psiquiátrico decorrente de intoxicação ou abstinência. Infelizmente, nem todos os serviços de urgência do país contam com psiquiatras em seus quadros para o atendimento de quadros de emergência e os demais profissionais médicos não são, na grande maioria, treinados adequadamente manejo deste grupo de pacientes. Mesmo em serviços de urgência, o não reconhecimento de comorbidade entre doença psiquiátrica e uso de substância psicoativa é comum sendo necessário treinamentos para as equipes de atendimento de serviços de urgência (psiquiátrica ou não) para o reconhecimento, manejo clínico e farmacológico desta população (uso de substâncias psicoativas e doenças psiquiátricas) com a finalidade de se obter melhores resultados entre no tratamento e reinserção social desta significativa parcela da população.

Referências bibliográficas

1. Amara SG and Kuhar MJ (1993) Neurotransmitter transporters: Recent progress Annu Rev Neurosci 16:73–93.

2. Battjes RJ, Pickens RW, Haverkos HW and Sloboda Z (1994) HIV risk factors among injecting drug users in five US cities. AIDS 8: 681-687

3. Brooner RK, King VL, Kidorf M, Schmidt CW and Bigelow GE (1997) Psychiatric and substance use comorbidity among treatment-seeking opioid abusers. Arch Gen Psychiat 54: 71-80

4. Brunette, Mary F., Noordsy, Douglas L., Xie, Haiyi, Drake, Robert E. Benzodiazepine Use and Abuse Among Patients With Severe Mental Illness and Co-occurring Substance Use Disorders
Psychiatr Serv 2003 54: 1395-1401

5. Carlini EA, Galduróz JCF, Noto AR, Napo SA. I Levantamento Domiciliar sobre o uso de drogas Psicotrópicas no Brasil. São Paulo: [CEBRID] Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, Departamento de Psicobiologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal Paulista; 2001.

6. Deborah C. Mash, Qinjie Ouyang, John Pablo, Margaret Basile, Sari Izenwasser, Abraham Lieberman, and Richard J. Perrin Cocaine Abusers Have an Overexpression of -Synuclein in Dopamine Neurons J. Neurosci., Apr 2003; 23: 2564 - 2571.

7. Derlet RW, Albertson TE. Emergency department presentation of cocaine intoxication. Ann Emerg Med. 1989; 18:182-6.

8. Drake, R.E., Mercer-McFadden, C., Mueser, K.T., McHugo, G.J., and Bond, G.R. (1998). Review of Integrated Mental Health and Substance Abuse Treatment for Patients with Co-Occurring Disorders. Schizophrenia Bulletin, 24(4): 589-608.

9. Dunn, John & Laranjeira, Ronaldo R. (1999) Transitions in the route of cocaine administration-characteristics, direction and associated variables. Addiction 94 (6), 813-824.

10. Ettenberg A, Petit HO, Bloom FE and Koob GF (1982) Heroin and cocaine intravenous self-administration in rats: Mediation by separate neural systems. Psychopharmacology 78: 204-209

11. FARRÈ, M., DE LA TORRE, R., LLORENTE, M., LAMAS, X., UGENA, B., SEGURA, J. AND CAM´I, J.: Alcohol and cocaine interactions in humans. J. Pharmacol. Exp. Ther. 266: 1364–1373, 1993.

12. Galduróz JCF, Noto AR, Carlini EA. IV Levantamento sobre o uso de drogas entre estudantes de 1º e 2º graus em 10 capitais brasileiras (1997). São Paulo: [CEBRID] Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, Departamento de Psicobiologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal Paulista; 1997.

13. Gawin FH, Ellinwood EH Jr. Cocaine and other stimulants: actions, abuse, and treatment. N Engl J Med 1988;318:1173-1182.

14. Gay, G.R. Clinical management of acute and chronic cocaine poisoning. Ann Emerg Med 11:562-572, 1982

15. Grispon L, Bakalar JB. Drug dependence: nonarcotic agents. Em Kaplan HI, Freedman AM, Sadock BJ eds. Comprehensive textbook of psychiatry. 3a edição. Baltimore: Williams & Wilkins, 1980: 1621

16. Hendrée E. Jones, Bridgette E. Garrett, and Roland R. Griffiths
Subjective and Physiological Effects of Intravenous Nicotine and Cocaine in Cigarette Smoking Cocaine Abusers
J. Pharmacol. Exp. Ther., Jan 1999; 288: 188 - 197.

17. Joann M. Schulte; Beverly J. Nolt; Robert L. Williams; Cynthia L. Spinks; James J. Hellsten Violence and Threats of Violence Experienced by Public Health Field-Workers JAMA 1998 280: 439-442

18. Kessler, R.C. (1994). The national comorbidity survey of the United States. International Review of Psychiatry, 6:365-76

19. Kitayama S, Shimada S, Xu H, Markham L, Donovan DM and Uhl GR (1992) Dopamine transporter site-directed mutations differentially alter substrate transport and cocaine binding. Proc Natl Acad Sci USA 89:7782–7785.

20. Kuhar MJ, Ritz MC and Boja JW (1991) The dopamine hypothesis of the reinforcing properties of cocaine. Trends Neurosci 14:299–302.

21. Laranjeira R, Silveira DX, Formigoni ML, Ferri CP, Dunn J. Crack cocaine: an increase in use among patients attending clinics in São Paulo: 1990-1993. Subst Use Misuse 1996;31:519-27

22. Lindenmayer JP. Pathophysiology of agitation. J Clin Psychiatry 2000;61 (suppl 14):5–10.

23. M. Frischer, S. T. Green and D. Goldberg, Substance Abuse Related Mortality: A Worldwide Review, Compiled for UNDCP, March 1994

24. Musto, D.F. Opium, cocaine and marijuana in American history. Sci American 1991, 265, 40 – 47

25. Pepper B, Ryglewicz H: The young adult chronic patient and substance abuse. TIE Lines Quarterly Bulletin 1:1–5, 1984

26. Pollack, D.A.; Holmgreen, P.; Lui, K.J.; and Kirk, M.L. Discrepancies in the reported frequency of cocaine-related deaths, United States, 1983 through 1988. JAMA 266:2233-2237, 1991

27. Ross, S. B., and A. L. Renyi (1967a) Accumulation of tritiated 5-hydroxytryptamine in brain slices. Life Sci. 6: 1407-1415.

28. Ross, S. B., and A. L. Renyi (1967b) Inhibition of the uptake of tritiated catecholamines by antidepressant and related agents. Eur. J. Pharmacol. 2: 18 l-l 86.

29. Rubin RB, Neugarten J. Medical complications of cocaine: changes in pattern of use and spectrum of complications. J Toxicol Clin Toxicol. 1992; 30:1-12;

30. Tjurmina, O.A., Armando, I., Saavedra, J.M., Goldstein, D.S., and Murphy, D.L. Exaggerated adrenomedullary response to immobilization in mice with a targeted disruption of the serotonin transporter gene. Endocrinology 143, 4520–4526 (2002).

31. Wetli, C.V., and Fishbain, D.A. Cocaine-induced psychosis and sudden death in recreational cocaine users. J Forensic Sci 30(3):873-880, 1985.

32. Whelan, K R, Dargan, P I, Jones, A L, O'Connor, N Atypical antipsychotics not recommended for control of agitation in the emergency department Emerg Med J 2004 21: 649

33. World Health Organization (1994). Lexicon of Alcohol and Drug terms. Geneva: World Health Organization.

34. Xiaoxi Zhuang, Ronald S. Oosting, Sara R. Jones, Raul R. Gainetdinov, Gary W. Miller, Marc G. Caron, and René Hen Hyperactivity and impaired response habituation in hyperdopaminergic mice PNAS, Feb 2001; 98: 1982.

FONTE: ABP. Associação Brasileira de Psiquiatria

Site:
http://www.abpbrasil.org.br/departamentos/coordenadores/coordenador/noticias/?not=137&dep=62

Um comentário: